quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Vaqueiros, agora com a proteção da lei

Foi aprovada, pelo Senado, no último dia 24 de setembro a regulamentação de uma das mais antigas e populares profissões em nosso país: a profissão de vaqueiro. O Projeto de Lei da Câmara (PLC) 83/2011, agora transformado em lei, protege aqueles que, sendo responsáveis pelo trato, manejo e condução de animais como bois, búfalos, cavalos, mulas, cabras e ovelhas, tem agora sua atividade profissionais regulamentada por lei. PPeA saúda, aqui, estes milhões de brasileiros!
Por Joan Edesson de Oliveira (*)
Mais foi tanto dos vaquero qui rênô no meu sertão
qui cantano um dia intêro nun menajo todos não.

(História de Vaqueiros, Elomar)

Mestre Costa na fazenda
hoje só abre cancela
mocidade deixou ele
ele também deixou ela
a "véice" montou nele
ele desmontou da sela


(Bom Vaqueiro, João do Vale / Luiz Guimarães)


A imagem me pegou feito quixabeira rasgando o gibão. Na tela à minha frente, o aboio da vaqueirama, encourados, no Senado da República. Meus olhos, cacimba funda no mais das vezes, marearam maravilhados, orvalho da manhã na folhinha miúda da unha-de-gato.

Lembrei de Pedro Duarte, aquele avô cego de um olho, pelo coice de um cavalo quando menino, que menino ainda se amontou e só apeou do seu cavalo ruço quando a doença lhe obrigou, às vésperas da morte, na pontinha de fazer oitenta e um anos.

Encourados, terno completo, peitoral, gibão, perneira, chapéu, alpercatas, tudo em couro, arabescos medievais nas costuras, pespontos antigos, trazidos da Península Ibérica e de lá, de mais longe ainda, dos dentros da Europa, dos confins do Oriente. Encourados vieram, rasgaram o sertão, o sertão lhes rasgou, as pontas de pau, as juremas, as unhas-de-gato, os xique-xique, os rompe-gibão, os chifres dos bois pé-duro.

Encourados vieram, nestes sertões que ainda há, para construir riquezas alheias. Na mestiçagem se fizeram ladinos, sabidos, os sentidos apurados de brancos, índios, negros. Na imensidão da caatinga o olho treinado reconhece o casco da rês, sabe de quantos dias o rastro, fareja a bebida, assunta o rumo do boi tresmalhado.

Não lembra o herói épico, grandioso. Por vezes miúdo, franzino, um cavalo de pernas finas. Não parece um herói. Na lida diária, tangendo o gado manso, tirando o leite, curando bicheiras, é apenas um qualquer. Ah! Mas quando solto na caatinga braba, sol a pino, o boi valente na frente e o cavalo magro resfolegando nas suas ancas, aquele sertanejo miúdo, todo em couro, colado ao pescoço do cavalo, é um gigante. Na cabeça apenas um pensamento: onde passa o boi, passa o vaqueiro. A carreira desafia a física, impossível que aquele corpo caiba em tão minguado espaço, entre duas pontas de pau prontas a lhe furar o olho, rasgar-lhe a carne; improvável que boi, cavalo e cavaleiro hajam transposto aquela grota, a pedra afiada a lhes espreitar no fundo do barranco.

Na amplidão da caatinga, solta o aboio. De onde vem esse som? Do muezim árabe? Que oceanos transpôs esse canto dolente, de improvável notação musical? Na amplidão da caatinga reboa o aboio, pra tanger, pra chamar o gado, pra orientar o bezerro perdido, ou pra cantar o amor perdido, quem sabe? Esse aboio dói na alma da gente, no mais fundo. Não é apenas o canto de um homem, mas a voz de um povo inteiro, que ressoa naquele canto vocálico, macio, sem a aspereza das consoantes.
A imagem, já disse, me pegou no flanco esquerdo, rasgou o invisível gibão que me cobria o peito, arrancou dali a dor antiga, sertaneja. Quanta inveja daqueles vaqueiros, por não ter sido um deles. É quase como se eu tivesse sido e não fosse mais. Como na voz de João do Vale, sertanejo do Maranhão: “Quem foi vaqueiro que vê/ outro vaqueiro aboiar/ fica lembrando dos "tempo"/ que vivia a vaquejar/ sofre igual quem ama alguém/ e vê com outro passar”.

(*) O comunista Joan Edesson de Oliveira é sertanejo, neto de vaqueiro, e sonha, ao menos uma vez na vida, vestir um terno completo de couro costurado pelo mestre Expedito Seleiro.
Ouça;


Nenhum comentário:

Postar um comentário