sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Haiti: entre o diabo e os biscoitos de barro

O Haiti não é um país, é um pesadelo, é o caldeirão onde o diabo parece cozinhar todos os males da humanidade, como em quase todos os países do mundo, na primeira república negra o mal se alastrou de forma descontrolada.

Por Guadi Calvo*, especial para o Vermelho


Reprodução
47% dos haitianos sofrem de desnutrição crônica e HIV-aids47% dos haitianos sofrem de desnutrição crônica e HIV-aids
Desde sua geografia o Haiti parece destinado à tragédia na rota dos grandes furacões do trópico e está localizado sobre uma complexa trama de falhas geológicas, que determinam periódicos e demolidores terremotos. A devastação é uma possibilidade cotidiana, as inundações e as secas se revezam com perversa exatidão.

A pobreza do país, que compete com a dos últimos países africanos é a maior do nosso continente. Segundo o Programa da ONU para o Desenvolvimento (Pnud), ocupa o posto de 108 no índice de desenvolvimento humano, 65% da população vive abaixo da linha da pobreza com menos de 2 dólares e a expectativa de vida é de apenas 50 anos.

Nas ruas de Porto Príncipe, em qualquer dos caminhos do país se reproduzem cenas tão angustiantes como as que se pode observar em Dharavi ou Mumbai (Índia), o bairro mais pobre do mundo.

A partir deste ponto, o resto dos males vem de bônus, a taxa de desocupação supera 80%, o aceso a serviços médicos está vedado para 90% dos poucos mais de 10 milhões de habitantes. E 47% dos haitianos sofrem de desnutrição crônica e HIV-aids, representa a taxa mais alta do Caribe segundo a OMS, com quase 7% da população infectada. Quando nos anos 80 se desconhecia muito sobre a então nova enfermidade, os médicos de Nova York começaram a chama-la se síndrome dos 4 Hs (homossexuais, hemofílicos, viciados em heroína e haitianos).

Na educação a situação não é melhor, 80% das crianças não estão na escola.

A partir do terremoto de 2010, que matou mais de 300 mil pessoas, e destruiu milhares de casas, todos os índices se agravaram muito mais e praticamente condenou a população a um destino catastrófico. Desde então mais de 3 milhões de haitianos constroem suas vidas nas ruas: perambulam sem rumo buscando o que comer, remexem no lixo para sobreviver até o próximo dia, que estarão tão desprotegidos quanto no anterior.

A mudança climática gerou praticamente um novo sistema de temporais que acabaram destruindo as poucas plantações que ainda existiam, a impossibilidade de ter acesso a abastecimento de recursos e o custo dos fertilizantes e transporte pioram o cenário que se produz cada vez menos. O que gerou um aumento no preço dos alimentos de quase 50%. Esta escassez de alimentos, uma experiência sem nenhuma novidade para a realidade haitiana, obrigou milhares de pessoas a se “alimentarem” de barro.

O barro de Hinche, uma localidade no centro do país que se tornou praticamente numa indústria. Alguns comerciantes levam a terra desde Hinche para processá-la misturando-a com água, sal e aceite e depois secá-la ao sol transformando-a em um “biscoito” de terra. Os “biscoitos”, depois de prontos, são vendidos nos mercados dos bairros mais pobres de Porto Príncipe, como Les Salines e Fort Dimanche, e pelas ruas da capital.


Os "biscoitos" de barro são feitos com a terra de Hinche
Como se tudo isso fosse pouco, desde 2013 a República Dominicana, com quem Haiti compartilha não só a Ilha La Española, mas também uma turbulenta relação histórica, colocou em marcha um programa chamado: “Plano Nacional de Regularização de Estrangeiros”. Um pomposo nome para acobertar a expulsão já não só dos milhões de haitianos que vivem em solo dominicano, mas também milhares de dominicanos de origem haitiana. Se estima que cerca de 500 mil haitianos vivem na República Dominicana, dos quais 200 mil já foram expulsos. Desde 1937 quando foram assassinados a machadadas por ordem do tirano dominicano Leónidas Trujillo, 15 mil haitianos na província de Dajablón, a relação entre ambas as nações não estava tão tensa.

Os políticos, outro mal natural 
O marasmo composto pela crise ambiental, econômica, de saúde, social e política se funde no pequeno país caribenho em um marasmo sem fim. Desde a queda da dinastia dos Duvalier, que governaram o país com mão de ferro e uns níveis de corrupção desenfreados durante três décadas o país não se recompôs. François Duvalier, “Papa Doc”, assumiu a presidência em 1957 e seguiu no posto até sua morte, em 1971, quando seu filho, Jean Claude, ou o Baby Doc, dá sequência no governo, com apenas 19 anos e com o cargo de “Presidente Vitalício”, mas foi derrubado em 19786. Já sem a trágica administração dos Duvalier, e passados 30 anos da queda desta maldita casta, o Haiti ainda não conseguiu se levantar e encaminhar uma ordem constitucional. As crises políticas, rebeliões, os golpes de Estado e a ingerência dos Estados Unidos impossibilitaram uma construção democrática. O país só não caiu em uma guerra civil porque ninguém está disposto a armar um bando que jamais poderá pagar a dívida.

Esta nova crise que levou o país a postergar as eleições presidenciais, cujo ganhador deveria assumir no próximo dia 7 de fevereiro, recebendo a faixa presidencial do atual presidente Michel Martelly.

A postergação responde às denúncias de irregularidades no primeiro turno eleitoral, realizado em 25 de outubro, que deixou em disputa o oficialista Jovenel Moise e o opositor Jude Celestin, que teriam que ter decidido o pleito eleitoral em 27 de dezembro.

A crise divide ainda mais profundamente o país e evidencia as estruturas de poder que nunca mudaram desde 1915 quando aconteceu a primeira invasão norte-americana e se estendeu até 1934, com outras em 1994, 2004 e 2010 (esta última, segundo a revista Time “invasão compassiva”). A partir do envio de tropas dos Estados Unidos para “atender” a população depois do terremoto.

As pressões e extorsões do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), colaboraram, particularmente desde 1994, e impedem uma reorganização econômica no país, os planos econômicos destes organismos são as causas capitais do recrudescimento da pobreza.

As denúncias de irregularidades nas eleições parlamentares de agosto do ano passado e as presidenciais de outubro foram culminaram em um largo processo de desacretiar a política.

A oposição está tratando de se apropriar dos protestos de rua, tentando criar um governo de transição que deveria organizar novas eleições em três meses. Essa postura não conta com o apoio de Washington. O secretário de Estado John Kerry, em sua visita ao país em agosto passado, advertiu que não apoiaria um possível governo de transição.

Enquanto a situação marca uma nova data para as eleições, o Conselho Eleitoral Provisório não está em condições legais de firmar o resultado. Atualmente conta só com 3 dos 9 membros titulares, já que cinco foram demitidos e um foi suspenso acuado de corrupção.

O país está literalmente a bordo de um vazio constitucional e às grandes maiorias haitianas só lhes importa quanto de dinheiro necessitam para comprar um biscoito de barro. 


Guadi Calvo é escritor e jornalista argentino. Analista internacional especializado em África, Oriente Médio e Ásia. Mais em sua página no Facebook
Fonte: vermelho

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