sábado, 1 de junho de 2013

Sacco e Vanzetti: Agonia e triunfo

Rodado na década de 1970, o filme Sacco e Vanzetti conta a história real do processo judicial que levou à morte dois anarquistas italianos que lutavam por melhores condições de trabalho nos EUA dos anos 1920

Por Marcello Scarrone


"Here's to you Nicola and Bart / Rest forever here in our hearts / The last and final moment is yours / That agony is your triumph!” (“A homenagem é para vocês, Nicola e Bart / repousem para sempre aqui em nossos corações / o momento extremo e final é seu / aquela agonia é o seu triunfo”).

A letra, escrita e cantada pela voz melodiosa de Joan Baez, com música composta por Ennio Morricone, virou, naquele início dos anos setenta, hino da juventude norte-americana e mundial, em seu protesto contra a guerra do Vietnã e a escalada militar no Sudeste asiático. Enquanto multidões enchiam praças e ruas pedindo o fim dos bombardeios de Washington, se colocando contra todo tipo de agressão e injustiça, de violência e opressão, a memória da condenação à morte de dois anarquistas italianos, na década de 1920, emigrados para os Estados Unidos voltava à tona como um símbolo e um exemplo.


 
 
Sacco e Vanzetti têm uma história bem conhecida, mas vale aqui uma referência. Nicola Sacco, oriundo da Itália do Sul, e Bartolomeo Vanzetti, da região de Turim, emigraram para os Estados Unidos quando jovens, no início do século XX, separadamente. Não se conheciam e faziam parte daquele grande contingente de italianos que abandonavam sua pátria em busca de trabalho e melhores condições de vida para si e a família, sonhando com a América. O sonho americano os acompanhava, como a possibilidade de encontrar no novo país a realização de uma promessa de felicidade e fortuna que aquela terra representava. 

Tendo Boston como nova morada, Sacco passou a trabalhar numa fábrica de calçados, enquanto Vanzetti desempenhou várias ocupações, como, por exemplo, a venda de peixe. Amiga de trabalhadores do setor industrial, a dupla se conheceu ao frequentar círculos anarquistas ítalo-americanos, participando de greves e se tornando presença constante em comícios e manifestações contra as injustiças no mundo do trabalho. Bartolomeu e Nicola passaram a ter seus nomes anotados nas fichas policiais. Assim, em maio de 1920, detidos pela força pública na iminência de um comício anarquista por estar de posse de panfletos e de algumas armas, foram acusados pelo assalto a uma firma na região suburbana de Boston e o anterior assassinato de dois homens que trabalhavam na própria empresa.

Não havia qualquer prova contra eles, mas a Justiça montou um processo que acabou se transformando num ato político: um gesto exemplar, uma lição de moralidade e de ordem para as “classes perigosas” e demais grupos da sociedade americana que as apoiavam em suas lutas. Há três anos o comunismo havia se implantado na Rússia, e ameaçava tomar o poder em países do ocidente europeu. Sacco e Vanzetti não eram comunistas, mas a esta altura sua militância anarquista não fazia diferença diante dos olhos do governo dos Estados Unidos. Além do mais, eram estrangeiros, sem muita familiaridade com o idioma da nação hospedeira, e participantes de protestos e manifestações. Nem mesmo a confissão de um detento que assumiu o crime serviu a impedir a condenação à morte dos anarquistas. A mobilização em favor da anulação da sentença, que registrou muitas passeatas e comícios, não só de anarquistas, nos EUA e em vários outros países, com a adesão de políticos e intelectuais, não impediu que a 23 de agosto de 1927 a cadeira elétrica pusesse fim à vida da dupla.

E assim a história daquele clamoroso erro judiciário, ou processo-farsa, chega aos anos Setenta, encontrando um diretor de cinema como o italiano Giuliano Montaldo, realizador de obras sempre politicamente empenhadas (anos antes participara como assistente na realização de outra obra-prima do cinema chamado de “político”, A batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo). Nasce Sacco e Vanzetti (1971), um filme que reconstrói a vida americana dos dois anarquistas, focando principalmente o processo judicial. Mesclando na abertura e na parte final cenas de documentos da época, em preto e branco, com cenas de ficção, o longa-metragem se apresenta como a tentativa de realizar uma reconstituição dos fatos, mostrando os bastidores do poder judicial e político.

Música, como a de Joan Baez e de Morricone, que cuidou da trilha sonora, e interpretações intensas como a de Gian Maria Volonté, no papel de Vanzetti – mais militante, mais voltado para a leitura de testos do anarquismo e mais falante- e a de Riccardo Cucciolla, na pele de Nicola Sacco – introvertido, contido, aparentemente mais frágil. O primeiro capaz de aprender o inglês para se defender publicamente, o segundo fechado em seu mundo provinciano (se expressa muitas vezes em seu dialeto do Sul), quase perdido diante da tempestade que se abateu sobre ele, mas na realidade digno e firme em sua luta contra a máquina da justiça.
 
Um exemplo de cinema empenhado. Militante, pode-se dizer. Na linha de outras produções do diretor, todas voltadas para a denúncia das violações dos direitos políticos ou humanos em geral. Mas aqui a militância não se sobrepõe, sufocando-o ou traindo-o, ao trabalho rigoroso de apresentação de um evento em suas características e circunstâncias reais. Assim, a parábola existencial e processual de “Nick and Bart” é restituída o espectador em sua intensa dramaticidade, quase como um documento histórico.
 
Ponto alto do filme é a declaração final de Vanzetti. Perguntado pelo presidente da corte se tivesse algo a dizer, antes que a condenação à morte fosse confirmada, o anarquista assim discursa na sala do tribunal: “Tenho pra dizer que sou inocente. Em toda a minha vida, nunca roubei, nunca matei, nunca derramei sangue humano. Lutei para eliminar o crime. Antes de todos, o da exploração do homem por parte do homem. Se há uma razão pela qual hoje estou aqui, é esta, e não outra. [...] Estou sofrendo e pagando porque sou anarquista...e eu sou anarquista. Porque sou italiano...e eu sou italiano. Mas estou tão convencido de que estou do lado da justiça que se vocês tivessem o poder de me matar duas vezes, e eu por duas vezes pudesse renascer, reviveria para fazer exatamente as mesmas coisas que fiz . Nicola Sacco...meu companheiro Nicola! Sim, pode ser que para falar eu seja melhor que ele. Mas quantas vezes, olhando-o, pensando nele, neste homem que vocês julgam ladrão e assassino, e que vão matar...quando os ossos dele já estiverem pó, e os nomes de vocês e de suas instituições não passarão de um passado maldito, o nome dele, o nome de Nicola Sacco, ainda estará vivo no coração das pessoas. [dirigindo-se a Sacco] Nós temos que agradecê-los. Sem eles teríamos morrido como dois pobres explorados. Um bom sapateiro, um bom vendedor de peixe, e nunca em toda nossa vida poderiam esperar de fazer tanto em favor da tolerância, da justiça, da compreensão entre os homens”.
 
Exatamente cinqüenta anos depois, a 23 de agosto de 1977, o governador de Massachusetts, Michael Dukakis, de forma pública e oficial, declarou Sacco e Vanzetti inocentes dos crimes pelos quais foram condenados.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional

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